sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

A Falsa Rainha




No início deste ano, resolvi tratar as minhas fortes enxaquecas. Estava aberta a qualquer tipo de tratamento a despeito de minhas crenças. Acupuntura, lobotomia, shiatsu, pilates, chá de erva amarga, reza forte, banho de pipoca... qualquer coisa contanto que me tirasse a dor. Acabei mesmo me resolvendo pelo lado tradicional. Postei no feicebuque que sentia dores, muitas dores, dores horríveis!!!, e pedi sugestões dos amigos conectados. Em menos de um minuto, um amigo de escola, da época em que eu lia e achava bom Paulo Coelho, respondeu-me prontamente fornecendo um número de telefone para eu entrar em contato.
Não vou me estender muito aqui contando o nosso estranho reencontro, depois de bem, quase vinte anos sem nos vermos e nem ao menos trocar uma palavrinha nesse intervalo que, apesar da dimensão, tenha sido efêmero por distração. Apenas farei uma pequena observação do tamanho de um só parágrafo. É costume universal quando vemos uma criança depois de um certo intervalo dizer “Nossa! Como ele cresceu!”, por ficarmos realmente assustados menos com o desenvolvimento da criança do que com o constatar do passar do tempo que ocorre para nós, também. Algo mais, porém, ocorre quando reencontramos amigos de infância, quer ele tenha virado padre, professor, político ou quer tenha se transformado em um doutor. Percebemos a transformação externa, mas não conseguimos ver um adulto como um outro qualquer na nossa frente. Ao vivermos esse reencontro, não há cabelos brancos e rugas residentes em nossos rostos que nos impeçam de enxergar o menino que ainda é e sempre será, para nós, o amigo reencontrado. Por outro lado, somente nesses reencontros percebemos também que há um lugar dentro da gente em que seremos eternamente infantis. Ver, então, uma criança de jaleco, medindo a minha pressão, auscultando o ritmo das minhas sístoles e diástoles e olhando a minha íris com uma lanterninha supimpa foi uma experiência que exigiu manobras psicológicas que ninguém havia me ensinado. Enfim, a minha sorte é que Leonam era do tipo “cê-dê-éfe”, ou para usar uma linguagem mais atual, meganerd. Sentava-se sempre lá na frente na sala de aula e não me dava lá tanta atenção naquela época. Vi isso como algo extremamente positivo e procurei só pensar durante a consulta em quanto ele sempre soube mais do que eu. Esse manejo mental evitou que eu pegasse aquele estetoscópio e dissesse para ele “agora é a minha vez de ver como você está!”.
O ponto que me fez vir aqui hoje é que Leonam, ou melhor, o doutor Leonam permitiu-me, sem querer, um outro tipo de viagem. Ele percebeu que a causa das minhas dores de cabeça era minhas noites pessimamente dormidas. Para tanto, prescreveu-me uma pílula mágica que alguns minutos depois de ingeri-la temos o sono dos deuses. E se eu já sonhava antes por madrugadas afora, agora por elas adentro ando vendo filmes de longa metragem projetados, diria Freud, na tela do esconderijo secreto: o inconsciente. As dores passaram, mas ao custo de toda manhã eu ter que me olhar no espelho depois de tudo o que me é revelado. Como ocorreu na alvorada de hoje.
Sonhei que ia por uma rua bem íngreme sob a luz da lua cheia, quando a uma curva do caminho dou de cara com um casarão tipo um castelo por onde orbitavam morcegos. As luzes estavam todas acesas de forma que eu poderia ver o que se passava lá dentro. De longe parecia uma festa, de perto, uma orgia. Corpos seminus dançavam freneticamente, gargalhadas estridentes, espadas de brinquedo em riste e chapéus de Napoleão. Não era uma festa. Não era uma orgia. Tratava-se de um hospício. Sozinha, prontifique-me de sair de lá o mais rápido possível quando de repente, não mais que de repente, surge à minha frente vindo do alto, talvez de uma árvore, um homem pensando
estar vestido de homem-aranha. A máscara nada mais era do que uma cueca vermelha onde no buraco das pernas viam-se olhos esbugalhados. Ele ficou naquela posição com os joelhos dobrados e as pernas arreganhadas, uma palma da mão apoiada no chão, o pulso da outra apontando na minha direção. Queria me agredir, mas não sem antes, aparentemente, prender-me com uma teia. Era um louco fugido e eu estava em pânico. Ocorreu-me, então, uma ideia salvadora:
– Como ousas a interromper o curso de uma Rainha? Fique de pé e volte de onde veio antes que eu mande os cavaleiros das... os cavaleiros das... os cavaleiros das Tilápias te prenderem!
O maluco imediatamente cumprimentou-me, tal como saudamos uma majestade: curvando-se e de cabeça baixa, gesto natural dos submissos. Isso feito, saiu pulando em direção ao castelo passando pelos ramos altos que saiam de troncos lenhosos. Comecei a rir no sonho, mas ri tanto e tão alto que o barulho rompeu a barreira onírica e materializou-se nos tímpanos de meu marido, que imediatamente acordou e ficou me olhando assustado. Achando que eu estivesse sofrendo, despertou-me acariciando cautelosamente o meu colo.
Tivesse eu ainda na terapia, ouviria que a doida que existe em mim é trazida num regime altamente rigoroso tal qual uma monarquia. O espelho que fala sem firulas o que vê disse-me que o diabo será o dia em que ela, a doida, descobrir que eu não sou rainha nenhuma.
A doida que existe em mim... os doidos que existem em todos nós... Olhando para todos que me rodeiam percebo que a civilização não é passível de sucesso dado que todos nós sequer conquistamos um mínimo de equilíbrio emocional sem muito esforço. A Bíblia já nos diz isso há séculos de forma simbólica. Perdemos no pecado a condição de sermos racionalmente harmoniosos, somos proibidos de ter a visão do paraíso.
Continuando a olhar a mulher descabelada e com olheiras no objeto de vidro e de metal bem polido, percebi que a doida que existe em mim é responsável pelas emoções mais puras que a vida me deu. É ela, essa descompensada oligofrênica de cabelos longos e alvoroçados, portadora de um vestido branco, curto e todo rasgado, usando um chapéu grandão cheio de adereços e que vive descalça, que vira e mexe salta de dentro de mim e grita sim! num  momento em que meu ser civilizado, com calças sociais, blusinhas fru-fru e sapatos scarpins ameaça a dizer não a alguma aventura. Foi essa doida quem se apaixonou inúmeras vezes pela mesma pessoa e permitiu que um outro, amando somente uma, fizesse-lhe o primeiro filho. Foi ela quem chorou quando criança, debatendo-se e assustando os vizinhos, a perda de um preá. Foi ela quem negou Jesus Cristo, o único homem equilibrado e perfeito que jamais existiu na face da terra, por temer o mesmo fim. É essa doida que não adormece dentro de mim e que, por isso, nunca me deixou ter uma noite completa de sonos, pois, sempre me desperta ao ficar reivindicando aos gritos, muito antes do amanhecer, o direito de correr contra o vento. Essa louca contida, refreada, domesticada, enrustida e subjugada é o legítimo sustentáculo da minha verdadeira personalidade, é a medida da minha condição feminina, heroína e pobre-coitada, branca por necessidade, santa para tantos por tanta obtusidade, soldado obediente, mas que um dia há de revoltar-se contra toda essa conveniente disciplina e libertar de vez de toda essa loucura quando descobrir que nunca fui e que jamais serei uma Rainha.
As dores de cabeça praticamente não existem mais e creio que ao parar de tomar o remédio elas não voltarão, pois a pureza de minha debilidade, antagonicamente poderosa pela sua fragilidade e pela sua força, está perto de ser coroada com flores, de ser adornada com bijuterias e de ir para as ruas saltitante, orgulhosa do que vê todas as manhãs naquele que reproduz nitidamente as imagens que o defrontam.

Fonte: TAKIMOTO, Elika. A Falsa Rainha. In: Minha vida é um blog aberto.
        Disponível em: <http://elikatakimoto.blogspot.com.br/>. Acesso em: 5 set. 2012.